É comum ouvir de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) a afirmação de que a Corte apenas cumpre a Constituição ao decidir temas polêmicos diante da inação dos demais Poderes. A fala parece técnica, neutra, quase irrefutável. Afinal, quem seria contra o cumprimento da nossa Carta Magna? Mas é precisamente aí que reside uma das falácias mais perigosas do funcionamento atual das instituições brasileiras.
O problema não está em o Supremo decidir. Está em decidir tudo, inclusive o que deveria ser resolvido pela política. Ao afirmar que atua apenas diante da omissão do Congresso ou da crise política, o STF ignora uma consequência direta de sua própria postura: o fato de os demais Poderes já contarem com essa intervenção e, por isso, não se sentirem pressionados a construir consensos. Executivo e Legislativo não enfrentam os embates necessários à formação de acordos democráticos porque sabem que, no fim das contas, o Supremo decidirá por eles.
Um caso recente ilustra com nitidez esse padrão. Após o Congresso derrubar o decreto que aumentava o IOF, o governo federal anunciou que levaria a questão ao STF. A resposta da Câmara foi imediata: recorrer ao Supremo seria visto como enfrentamento ao Legislativo. Isso revela o esgarçamento da relação institucional entre os Poderes. Quando o Executivo, diante de um revés político, prefere transferir o conflito ao Judiciário em vez de reconstruir pontes com o Parlamento, o que se tem não é a solução de uma controvérsia. É o aprofundamento de uma crise.
O que deveria ser exceção tornou-se método. A judicialização da política virou um atalho institucionalizado. Em vez de resolvermos os conflitos pelas vias legítimas da negociação democrática, preferimos a imposição de soluções por via judicial – muitas vezes com base em interpretações que esticam a Constituição para além de seus limites textuais.
Não se trata de negar a importância do STF como guardião da Constituição, tampouco de desprezar a função contramajoritária da Corte na proteção de direitos fundamentais. Entretanto, é preciso reconhecer que o ativismo judicial permanente já não serve mais como freio a abusos – tornou-se parte do próprio desequilíbrio. Quando o Supremo ocupa sistematicamente os espaços deixados pela política, ele passa a desincentivar o funcionamento dos Poderes que deveriam deliberar. Instala-se uma dependência institucional que enfraquece a democracia e empobrece o debate público.
Nem sempre foi assim. Há momentos em nossa história recente em que o Supremo optou por se conter, mesmo diante de forte pressão social ou omissão legislativa. Nos anos 1990, por exemplo, durante as reformas econômicas dos governos Collor e FHC, a Corte foi provocada a intervir em processos de privatização de grandes estatais. Em vez de julgar o mérito das decisões econômicas, o STF reconheceu que esse campo é reservado ao Executivo e ao Legislativo, desde que respeitados os parâmetros legais e constitucionais.
Outro caso emblemático foi o do direito de greve dos servidores públicos, previsto na Constituição de 1988, mas cuja regulamentação foi sistematicamente adiada pelo Congresso. Durante mais de uma década, a Corte resistiu à tentação de suprir a omissão legislativa. Só muito tempo depois, passou a aplicar, com cautela, a Lei de Greve da iniciativa privada por analogia – não como substituição do Parlamento, mas como uma medida mínima de concretização do direito.
Mais marcante ainda foi a postura da Corte durante o impeachment de Fernando Collor, em 1992. Mesmo diante da tensão institucional e da pressão popular, o STF recusou interferir nos atos do Senado Federal, reafirmando que o julgamento político do presidente da República pertence ao Parlamento. Era uma oportunidade clara de protagonismo judicial. A Corte escolheu a democracia.
Esses exemplos mostram que o Supremo já soube dizer “não” a si mesmo. E foi justamente nesses momentos que se fez maior. A autoridade de um tribunal não se mede apenas pela sua capacidade de decidir, mas também pela sabedoria de se abster quando o custo institucional da decisão ultrapassa os limites do que lhe cabe.
Cumprir a Constituição é mais do que aplicar textos. É respeitar os contornos do pacto que ela estabelece. É confiar que os demais Poderes devem ser instados a agir, e não sistematicamente substituídos. Quando o Supremo decide tudo, a política não decide nada – e, nesse vazio, a democracia se esvazia também.
Márcio Nogueira Advogado e presidente da OAB de Rondônia – Artigo para o Estadão